W. N. Hohfeld e os conceitos jurídicos fundamentais

A obra do norte-americano Wesley Neocomb Hohfeld , (1879-1918), pouco conhecida entre nós, inscreve-se na tradição de estudos analíticos do fenômeno jurídico que remonta a Jeremy Bentham. Concentra-se na elucidação dos termos, conceitos e estruturas do Direito, independentemente de sua importância ou peso axiológico, integrando, assim, o esforço de construção das bases de uma Teoria Geral do Direito nos marcos do positivismo jurídico.

Mas, à diferença de pensadores mais contemporâneos como Austin ou Kelsen, Hohfeld não produziu uma obra com as motivações canônicas daqueles expoentes do pensamento positivista. Em sua curta carreira – morreu aos 38 anos -, deixou apenas artigos escritos, nos quais se mostra clara a sua intenção de contribuir para entender e solucionar problemas práticos do cotidiano da jurisprudência, rechaçando a idéia de que seu interesse pela identificação precisa da natureza do direito e das relações jurídicas pudesse caracterizar seus estudos de filosofia analítica como um fim em si mesmo.

Ele parte de uma constatação – a despeito de ter sido feita há um século – ainda bastante atual: a situação de confusão conceitual em torno do discurso de atribuição de direitos por meio de sentenças aparentemente simples como “A tem direito a X”, ou ainda “A tem, em face de B, direito a X”. Para começar, as dificuldades conceituais surgem diante da diversidade de significados que a expressão “direito” pode assumir em determinados contextos qualificados normativamente.

Por influência da escola alemã, na teoria da relação jurídica, aprendemos que para todo direito subjetivo existe um dever que lhe é contraposto, uma relação de débito e crédito, em que o sujeito ativo principal da relação tem uma pretensão exigível (objeto da relação) perante o sujeito passivo principal. Será isso mesmo verdade? Ou melhor, será que a teoria clássica da relação jurídica pode ser aplicada para explicar toda a complexidade do exercício dos direitos? De quem é o dever relacionado ao direito à moradia (art. 6º, CF)? De quem é o dever relacionado ao direito ao sufrágio universal, o próprio titular? Se eu desejo exercer a minha liberdade de expressão, alguém tem o dever de facilitar esse meu direito?

Segundo Hohfeld:

“Um dos maiores obstáculos para a compreensão clara, enunciação aguda e solução verdadeira dos problemas jurídicos surge com freqüência da suposição expressa ou tácita de que todas as relações jurídicas podem ser reduzidas a ‘direitos’ (subjetivos) e ‘deveres’, e de que essas últimas categorias são, portanto, adequadas para analisar os interesses jurídicos mais complicados”.

Para Hohfeld, dependendo do contexto, a expressão “direito” pode assumir quatro significados básicos: claim-rights (pretensões ou direitos em sentido estrito), liberty-rights (privilégios), powers (poderes) e immunities (imunidades).

Esses “direitos” mantêm, com outros quatro conceitos, dois tipos de relações lógicas: de correlação e de oposição.

Os outros quatro conceitos são: dever, não-direito, sujeição e incompetência.

Dessa forma, Hohfeld monta seus oito “pares conceituais”. Quatro deles em relações de correlação e outros quatro em relações de oposição.

Estariam assim em correlação os conceitos:

direito/dever;
privilégio/não-direito;
poder/sujeição;
imunidade/incompetência.

Em relação de oposição (negação) estariam os conceitos

direito/não-direito;
privilégio/dever;
poder/incompetência;
imunidade/sujeição.

Daí decorre que, considerando a correlação entre os conceitos-chave:

“a) Ter direito-pretensão frente a alguém significa estar em posição de exigir algo de alguém;
b) Ter um privilégio frente a alguém significa não estar sujeito a qualquer pretensão sua. Privilégio expressa aqui ausência de dever;
c) Ter um poder frente a alguém significa a capacidade jurídica (competência) de modificar a situação jurídica desse alguém;
d) Ter uma imunidade frente a alguém significa que esse alguém não tem o poder normativo de alterar-lhe a situação jurídica, pois é incompetente normativamente para isso.”

O pensamento de Hohfeld influenciou, no início, principalmente os autores do mundo anglo-saxão, mas seu sistema conceitual foi reconhecido por Robert Alexy – um dos autores mais citados na moderna teoria constitucional continental – como ponto de partida para a análise conceitual dos direitos fundamentais no contexto de suas relações jurídicas .

A sofisticação analítica de seu sistema conceitual facilita bastante a compreensão da rica diversidade deôntica do catálogo de direitos fundamentais. Mas, posta em confronto com a produção jurisprudencial, o sistema hohfeldiano expõe a substituição, que se processa nos tribunais atualmente, do discurso decisório em torno do reconhecimento de direitos por outro, o do reconhecimento circunstancial de situações razoáveis ou proporcionais para a solução das controvérsias.

Ironicamente, a aceitação de que a Constituição e seu catálogo de direitos fundamentais têm força normativa provocou um importante deslocamento das fontes tradicionais do Direito: dos parlamentos para os tribunais constitucionais, da política para a retórica e a argumentação jurídica. Antoine Garapon classifica como “democracia jurídica” esse plano em que se edifica criativamente a jurisprudência constitucional, o terreno da razoabilidade, da equidade, do devido processo legal substantivo.

É bem verdade que o processo político que dá início à “era dos direitos” foi precedido pela elaboração conceitual (filosófica) das bases racionais que permitiram realizar essas profundas transformações modernas na estrutura da sociedade, basicamente: o contratualismo e a idéia de vontade geral como pilar da representatividade política; a teoria da separação de poderes para organizar e auto-limitar o exercício da força; e a teoria dos direitos subjetivos naturais, inerentes ao indivíduo humano por dignidade própria e como forma de limitar externamente a força do Estado.

Mas a questão teórica mais interessante em relação aos direitos fundamentais não parece mesmo estar mais – pelo menos não diretamente – no plano de seu fundamento (valores): saber se eles têm ou não razões últimas e absolutas ou se os direitos são de fato criações históricas e, por isso mesmo, relativos. Essa questão do fundamento – é Bobbio quem afirma – teria sido superada pelo reconhecimento normativo que os direitos fundamentais receberam das constituições e dos tratados internacionais. Para ele, uma vez positivados, o problema seria então de cunho político, ou seja, garantir a eficácia dos direitos declarados. O que Bobbio não observou – em toda a amplitude do fenômeno – foi que a tarefa de garantir a eficácia dos direitos fundamentais está hoje no meio de uma disputa entre a democracia política e o discurso jurídico. A positivação dos direitos trouxe para a arena da jurisdição constitucional a tarefa de realização dessas conquistas. Foi essa condição, o status constitucional dos direitos (e dos princípios), que gerou o aparecimento do ativismo judicial seletivo dos tribunais na atualidade. Desde então, o Judiciário tem se encarregado de dar eficácia a essas conquistas, o que reforça a importância do estudo analítico dos direitos fundamentais e das relações jurídicas que desencadeiam.

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