Direitos Fundamentais (quando, de quem, o que, quais…?)

A Constituição de 1988 inovou ao posicionar o título dos direitos fundamentais antes da organização do Estado. Foi proposital. Os constituintes quiseram marcar, com esse gesto simbólico, a prevalência desses direitos sobre a força pública ou privada. Um sinal para os intérpretes, os juristas especialmente, que começaram a produzir a nova doutrina constitucional do Brasil. Cedo essa doutrina constitucional chegaria às sentenças dos juízes, para depois freqüentar a bancada do Supremo Tribunal Federal.

A Constituição de 88 foi também bastante pródiga na criação de direitos fundamentais, de todas as gerações e espécies, individuais, difusos e coletivos. Mas, do ponto de vista de sua funcionalidade, aquilo que chamamos de direito se apresenta, no catálogo constitucional, com todas as diversas formas ou conceitos apontados por Hohfeld: poderes, imunidades, liberdades e pretensões… A forma lógica que o direito fundamental assume é diferente quando se compara o direito de manifestação com a função social da propriedade, por exemplo. Direitos de primeira geração, as liberdades clássicas, têm funcionamento muito diverso do modo de realização dos direitos de segunda e de terceira. Nesse sentido (funcional ou analítico), é mais correto chamar de posições jurídicas essa ampla gama de situações juridicamente protegidas a que chamamos direitos subjetivos fundamentais.

Outra conseqüência – essa de ordem prática – da concessão em massa de direitos foi a inevitável situação de conflitos entre eles. Mas não se trata mais do simples conflito de interesses que se resolve pelo reconhecimento do direito de alguém e do não-reconhecimento do direito do outro. Quando o choque se dá entre direitos fundamentais, a intimidade e a informação, por exemplo, não se pode reconhecer um deles e não se reconhecer o outro. A presença de um não aniquila o outro. A existência de um não quer dizer a não-existência do outro.

A solução judicial dessa colisão entre “direitos” não passa mais pela simples aplicação da norma ao fato, pois um novo e complexo jogo argumentativo que se trava no campo da eqüidade é disputado. Mas o resultado prático dele é que ninguém pode afirmar com segurança que é titular de todos os direitos fundamentais, ou melhor, que pode exercê-los e exigi-los sempre na mesma intensidade e em qualquer circunstância. O preço da necessidade permanente de ponderação é a fluidez efêmera e tópica das decisões.

A teoria pós-positivista do direito constitucional – já apropriada pela jurisprudência – substituiu a lógica formal, a subsunção, como técnica decisória, pela “ponderação de valores” para lidar com os problemas de equidade (morais) que a colisão entre direitos fundamentais provoca. Esse procedimento consiste, grosso modo, em indagar até que ponto a realização de um dos direitos simplesmente não aniquila o outro e, por outro lado, até que ponto, e sob que circunstâncias fáticas e jurídicas presentes no caso concreto, deve-se dar prevalência a uma dessas posições em detrimento da outra. O resultado final dessa operação não é exclusivamente lógico, pois passa a ter influência sobre a “decisão ponderada” do julgador uma série de fatores que são estranhos ao processo judicial, que é o encadeamento lógico-formal do conflito. A ponderação exige levar-se em conta o contexto social, o sentido das conseqüências da decisão, o peso das partes em conflito, para saber quem pode suportar um ônus restritivo maior à sua posição jurídica, enfim, passa a valer o que os ingleses chamam de common sense.

O enorme ganho civilizatório obtido com a universalização e diversificação do catálogo de direitos subjetivos não deve, portanto, esconder as dificuldades também maiúsculas de sua realização prática.

Afinal, de quem são os direitos? (Não vale mais a resposta abstrata e tautológica de que os direitos pertencem a todos os homens).

Existe mesmo clareza quanto à titularidade dos direitos fundamentais? De quem é o direito à negociação coletiva? Quem tem direito à saúde? O direito à propriedade é de todos? (O que seria essa sua função social?) Pode a intimidade de alguém protegê-lo da prática de atos ilícitos?

As perguntas se acumulam nesse terreno, mas percebe-se claramente que a questão da titularidade de direitos também não pode ser respondida abstratamente. Dizer que todos os indivíduos são titulares de direitos fundamentais não quer dizer que todos somos titulares dos mesmos direitos, com a mesma intensidade e simultaneamente, ou seja, no convívio social, que é o solo em que os direitos se realizam ou são violados, existe uma rede intrincada de relações entre pessoas e grupos; nessa rede há atritos entre interesses, há conflito social, há desigualdades econômicas, e tudo isso acaba interferindo na eficácia dos direitos fundamentais, além do que muitas vezes essas circunstâncias acabam por consagrar posições de certos grupos sociais, ou de certos indivíduos importantes, em detrimento de outros. Isso talvez ajude a explicar brevemente nossos defeitos históricos: a impunidade, o clientelismo, o machismo, o nepotismo, a intolerância, o racismo…

Note-se que a questão assim tratada continua no terreno dos valores, onde se dá uma acirrada disputa hermenêutica, seja para afirmar/negar direitos, seja para desvendar as formas de sua violação. E, claro, em ambos os casos, estaríamos tratando de situações subjetivas, em que alguém teve o direito reconhecido ou o teve desrespeitado. O que é preciso ressaltar é que, diante de tanta imprecisão conceitual e da enorme abertura interpretativa vivenciada pela jurisprudência, não se pode falar, mesmo quando o texto normativo é aparentemente inequívoco, que alguém tem um direito ou uma obrigação sem se examinar o contexto, as circunstâncias em que esse direito é ou não exercido pelo seu suposto dono, o titular, e sem medir as possibilidades argumentativas da defesa dessa posição jurídica em juízo.

O problema fica ainda um pouco mais complicado quando esse titular não existe como pessoa individual, quando ele é uma coletividade. Essa é, aliás, uma das grandes dificuldades enfrentadas pela teoria constitucional decorrente da entrada em cena dos direitos sociais, dos direitos difusos e coletivos, direitos sem sujeito individualizável. Como atribuir-lhes titularidade, ou, dito sob outra perspectiva, quem reclamará o direito em caso de violação?

A solução da Constituição foi atribuir a tarefa de representação processual desses novos direitos ao Ministério Público e a entidades associativas e sindicais. Para isso, a Constituição previu a ação civil pública e a ação popular, a substituição processual dos sindicatos, o mandado de segurança coletivo, tudo de modo a garantir eficácia aos novos direitos sem sujeito definido. E esse processo, que é em tudo novo, ainda está em pleno desenvolvimento.

Isso nos leva a duas conclusões básicas, mas ainda preliminares, para o enfrentamento do problema da eficácia dos direitos fundamentais.

Em primeiro lugar que, às vezes, os direitos são criados antes da definição de deveres respectivos e, como conseqüência, sem a definição de sua titularidade ativa e passiva . O caso do direito à moradia é clássico, mas o mesmo se diga em relação aos outros direitos sociais (educação, seguridade, trabalho…). Todos foram enunciados em momento anterior à possibilidade material de sua realização. É que esse tipo de direito exige mais do que o simples respeito, exige todo um complexo desenvolvimento de novas obrigações para que alguém possa exercê-lo, embora seja possível dizer que, mesmo sem essa definição de obrigações, uma vez proclamado ou reclamado, já existe o direito, ainda que como promessa.

A outra conclusão é que nem sempre o exercício de um direito exige uma prestação contrária, tal como aprendemos na teoria da relação jurídica. Pode ser que o exercício do direito de alguém se manifestar livremente provoque apenas indiferença.

Tudo isso ocorre porque os conceitos clássicos de direito subjetivo, forjados por Savigny (teoria da vontade) e por Ihering (teoria do interesse) no contexto histórico de predominância do direito privado, não parecem dar conta de explicar satisfatoriamente os diversos tipos e formas de relação decorrentes da prática jurídica. Isso é ainda mais evidente quando se trata de direitos fundamentais, ou seja, de posições juridicamente protegidas diretamente pela Constituição, dotadas de força normativa e aplicabilidade imediata, e que passaram a ser considerados como um ordenamento objetivo de valores aplicáveis a todos os ramos do Direito.

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